Tem uma pergunta que quase ninguém gosta de fazer em público, porque ela estraga a narrativa pronta: o que acontece quando a agressora é ela? Quando é a mulher que bate, ameaça, quebra coisa, persegue, humilha, chantageia com filhos, inventa acusação? Que tipo de proteção o homem encontra hoje se fizer o que todo mundo manda ele fazer e “procurar a justiça”?
Vamos direto ao ponto: a Lei Maria da Penha não foi desenhada para o homem. Ela é, por definição, uma lei de proteção à mulher em contexto de violência doméstica e familiar. Juridicamente, a vítima ali é feminina por essência. E é aqui que começa o buraco: se é ela que agride e é ele que apanha — física, psicológica ou moralmente —, o sistema simplesmente não sabe o que fazer com esse sujeito. Em muitos lugares, não quer nem saber.
Imagina a cena. O cara resolve quebrar o roteiro. Em vez de aguentar calado, entra numa delegacia e diz: “eu estou sofrendo violência em casa”. A resposta mais padrão que existe é uma só: risinho de canto de boca. “Senta aí, amigo”, “isso é briga de casal”, “você é homem, resolve isso você mesmo”, “vai estragar a vida dela por causa de uma discussão?”. Se ele insiste que é sério, que tem medo, que já apanhou, que já foi ameaçado com faca, com acusação inventada, vem a segunda barreira: não há protocolo pensado para ele. Não há todo o aparato montado que existe quando a frase é “mulher vítima de violência doméstica”.
A polícia até pode registrar ocorrência. O promotor até pode olhar com atenção. O juiz até pode usar figuras genéricas do Código Penal e do Código de Processo Civil pra tentar encaixar alguma proteção. Mas o recado velado é sempre o mesmo: você está entrando num lugar onde, oficialmente, você não é o tipo de vítima que o sistema espera atender.
E aí o discurso oficial entra de sola com aquele mantra: “homens também podem ser protegidos, a lei é pra todos”. No microfone, parece lindo. No balcão, o que vale é o que acontece com o cara quando ele dá a cara a tapa. Muitos descobrem que, se for um pouco mais insistente, ainda corre o risco de virar o agressor da própria história. Basta a outra parte chegar depois, chorar na hora certa, falar o que o roteiro quer ouvir, e pronto: ele passa a ser o violento, o controlador, o perigoso. E aí quem sai com medida protetiva na mão é ela, não ele.
Não é teoria. Quem trabalha na área vê isso. Quem vive isso conta. Só que esse homem esmagado no meio da engrenagem não entra em cartilha de ONG, não entra em campanha de governo, não entra em palestra. Ele entra, no máximo, na piada: “homem apanha, mas aguenta”, “homem com medo de mulher”, “perdeu a moral”. O peso simbólico é tão grande que muita gente prefere continuar em casa apanhando, sofrendo ameaça psicológica e risco real, a virar motivo de deboche e ainda tomar uma invertida jurídica.
Alguém pode perguntar: “então você quer uma Maria da Penha para homens?”. A pergunta já vem torta. Eu quero uma coisa anterior a isso: honestidade sobre o que existe e sobre o que não existe. Hoje, a proteção no papel é assimétrica por definição. Mulher tem um estatuto específico, um fluxo pensado, um nome forte pra dar peso político às decisões. Homem tem, em tese, a proteção genérica de qualquer vítima. Na prática, essa “genericidade” é sinônimo de ninguém mexeu um dedo pra estruturar nada pra você.
Isso tem efeito concreto. Quando a vítima é mulher, há uma cultura — às vezes até exagerada, como a gente já discutiu — de conceder medida protetiva no atacado. Quando a vítima é homem, o padrão costuma ser o inverso: desconfiança, demora, ironia, aquela eterna frase “tem certeza que quer registrar isso?”. Em um caso, o risco é a pena antecipada para um acusado; no outro, o risco é a completa falta de amparo para quem está apanhando de verdade. A injustiça muda de lado, mas continua injustiça.
E não, essa conversa não é um jogo de soma zero. Não é “se eu olho para o homem, abandono a mulher”. É justamente o contrário: ou a gente encara que violência íntima não escolhe sexo ou vamos continuar tratando metade dos casos como se fossem invisíveis. É confortável pintar o quadro em preto e branco: “eles” sempre agressores, “elas” sempre vítimas. Dá ótima narrativa, enche auditório, rende campanha. Mas basta você passar uma tarde ouvindo histórias de delegacia, de fórum, de grupos de apoio discretos, pra perceber que a vida real é bem mais bagunçada que o panfleto.
Tem mulher que bate. Tem mulher que humilha, ameaça, destrói reputação. Tem mulher que joga falsa denúncia de abuso em cima do pai dos filhos com a frieza de quem está movendo peça no tabuleiro. Tem mulher que usa o medo que o homem tem de ser ridicularizado ou criminalizado para mantê-lo sob controle. E tem homem que, mesmo assim, continua preso por vergonha e por certeza de que, se procurar ajuda, vai sair de lá pior do que entrou.
Quando o Estado escolhe olhar só para um lado, ele não está “corrigindo uma desigualdade histórica”. Ele está criando outra. O mínimo de seriedade nesse debate exigiria três movimentos simples: reconhecer publicamente que homem também sofre violência doméstica, que não há estrutura pensada pra ele e que isso precisa ser corrigido.
Corrigir não significa enfraquecer a proteção da mulher. Significa admitir que toda lei que só enxerga um tipo de vítima e um tipo de agressor gera incentivos perigosos. Gera gente se sentindo autorizada a abusar porque “ninguém vai acreditar nele mesmo”. Gera agente público que, no automatismo, já entra no caso com a cabeça decidida: se é ela falando, é vítima; se é ele falando, é desculpa. Gera um sistema que, em nome de corrigir a história, repete o velho vício: julga antes de ouvir.
No fim das contas, a pergunta que fica é simples: um homem que apanha da mulher hoje tem coragem de bater na porta do Estado? E, se bater, o que encontra? Enquanto a resposta honesta for “risadinha, descaso e risco de sair como agressor”, qualquer discurso de “proteção a todas as vítimas” é só marketing institucional.
E como eu tenho insistido em outras matérias: não adianta só xingar o sistema de longe. É preciso mexer nas tripas. Incluir o homem vítima nas estatísticas com nome e sobrenome. Mapear esses casos com a mesma seriedade que se mapeia feminicídio. Rever protocolos de atendimento. Treinar polícia e Judiciário para entender que “violência doméstica” não é sinônimo automático de “homem agressor, mulher vítima”. Só assim, um dia, quando a agressora for ela, o homem que apanha vai poder dizer “eu fui à justiça” sem que essa frase soe como piada pronta.






