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Lei Maria da Penha X Constituição — na teoria nada muda, mas na prática…

A Constituição promete tudo o que a gente aprende no básico: presunção de inocência, devido processo, contraditório, ônus da prova na mão de quem acusa. No papel, a Lei Maria da Penha não mexe nisso. Diz que é para proteger, evitar risco, acalmar o incêndio enquanto o juiz olha o caso com calma. Na prática, o que acontece no balcão é outra coisa: o “provisório” vira meses, o afastamento do lar vira castigo de fato, e o sujeito carrega a marca de condenado antes da primeira pergunta em audiência.

Funciona assim. Basta o relato inicial, a engrenagem corre, a protetiva sai, e o acusado dorme fora de casa naquela noite. Parece bonito dizer que “não é pena, é prevenção”. Para quem perde o teto, os documentos, o computador de trabalho, a rotina com os filhos e ainda vê vizinho cochichando no elevador, isso tem cheiro, gosto e efeito de punição. E o detalhe que ninguém gosta de admitir: nesse estágio, o padrão de prova é baixo mesmo. É a lógica da urgência. Indício + risco. O problema não está em proteger de imediato; está em não reavaliar logo depois, em deixar a decisão provisória virar vida real por inércia, agenda lotada e carimbo automático.

Daí nasce o descompasso. O processo penal exige prova em juízo, não aceita condenação com base em papel do inquérito, não autoriza juiz a usar “achismo” como sentença. Ao mesmo tempo, o ambiente das protetivas joga com outra régua. A palavra da vítima tem peso — e precisa ter, porque são crimes sem testemunha, sem câmera, sem barulho. Mas peso não é onipotência. Para condenar de verdade, a jurisprudência pede coerência, firmeza, algum reforço de contexto: mensagens, histórico, relatos consistentes. Só que a rua não lê acórdão. A rua enxerga a sirene, o afastamento, a mudança de rotina. A rua registra: culpado. E esse julgamento paralelo empurra emprego, reputação e relações para o buraco. Tudo isso antes da primeira pergunta feita sob contraditório.

Some a isso um efeito pouco discutido. Quem cumpre regra é justamente quem sente a pancada no corpo inteiro. O sujeito que não oferece risco — o perfil que a própria lei não mira — é o que respeita perímetro, corta contato, segue calado e paga aluguel de emergência. O violento contumaz, aquele que já ignora ordem judicial como quem ignora placa de trânsito, continua ignorando. Às vezes, a própria ciência da medida o acende mais, aumenta a ira, eleva o risco real para a mulher. Ou seja: a sanção indireta pesa no cumpridor e falha no infrator, e o Estado, que deveria ter mira e tempo, resolve tudo à martelada, no atacado.

Não, isso não é argumento para desproteger ninguém. É exatamente o contrário. Se o objetivo é proteger, então precisamos calibrar. Medida protetiva não pode virar pena processual por comodidade. Proteger é agir rápido e revisar rápido. É separar o caso que exige afastamento do lar daquele que resolve com proibição de contato e perímetro. É explicar por escrito por que a medida existe, qual fato concreto indica risco atual e quando essa avaliação vai ser reaberta. É garantir, no mesmo despacho que manda sair de casa, um acesso assistido ao imóvel para pegar documento, computador, remédio, material de trabalho — o mínimo para o sujeito não ser esmagado economicamente antes do jogo começar.

Também é hora de falar de prova sem hipocrisia. Ninguém “revogou” o exame de corpo de delito. Se há vestígio, pericia-se. Se não há — e muitas vezes não há —, entram outros meios: a narrativa coerente no tempo, a corroboração possível, o histórico de ameaças, tudo isso conta. O que não dá é usar essa flexibilidade pensada para o mérito como atalho eterno na fase cautelar, mantendo alguém no purgatório sem prazo, sem audiência de justificação, sem reavaliação real. A tutela de urgência precisa ter relógio. Sem relógio, vira pena. E pena sem sentença é exatamente o que a Constituição proíbe.

Tem mais um ponto sensível. O sistema quase nunca registra desfecho com honestidade. O caso que não conseguiu prova bastante vai para o limbo do “arquivado”, e o “arquivado” vira rótulo social de absolvição ou de farsa, conforme o lado. Nem uma coisa nem outra. Arquivo por falta de prova não autoriza dizer que era mentira; também não autoriza carimbar que era verdade. Falta categoria, falta dado, falta transparência. Se houvesse registro padronizado de “não comprovado”, de “inverídico/infundado”, de “retração”, de “falsa comunicação indiciada”, a discussão sairia do grito. Hoje, não sai, porque a planilha é muda e o tribunal da internet é barulhento.

E quando alguém me pergunta “mas então você quer soltar geral?”, a resposta é curta: eu quero Estado que proteja sem atropelar. Estado que corre para impedir dano e corre do mesmo jeito para rever a medida, ouvir as partes, ajustar a mão. Estado que desce firme no descumpridor — porque descumprir protetiva é crime, e crime, quando não tem consequência, vira licença para tudo. E quero Justiça que não confunda pressa com atalho. Pressa é necessária, atalho custa caro. Custa reputação, renda, vínculo com filho, equilíbrio mental. E às vezes, custa segurança, porque transforma gente comum em estatística de desespero. O homem que se sente injustiçado, isolado, sem apoio e sem saída é exatamente o clichê do ditado: “o mais perigoso é o que não tem nada a perder”. Não é uma desculpa; é um alerta para a política pública.

No fim, voltamos ao título: na teoria, nada muda; na prática, muda sim. Muda no bolso, na cama vazia, no olhar do chefe, no grupo da família, no olhar do filho que não entende por que o pai não pode entrar em casa. Não é aceitável chamar tudo isso de “medida neutra” e virar a página. Se a lei existe para proteger, que proteja de ponta a ponta: quem corre risco real e quem não pode ser punido antes de ser ouvido. É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo, mas isso exige calendário, fundamentação, revisão periódica, porta de saída para o injusto e mão pesada para quem desafia medida e transforma ameaça em ato.

Constituição não é poesia para concurso público; é regra do jogo. Se a Maria da Penha é ferramenta séria — e é —, então que seja aplicada com mira, não com marreta. Proteção de verdade não precisa fantasiar punição de preventiva. Basta fazer o óbvio que o sistema evita: agir rápido, explicar, reavaliar, corrigir. O resto é burocracia com cara de virtude. E virtude, sem freio e sem prazos, vira exatamente aquilo que a Constituição tentou impedir: pena antes do julgamento.

Comparação ponto a ponto

PrincípioConstituição/CPPComo a LMP operaO que acontece na prática
Presunção de inocênciaVálida até sentença finalNão alteradaEfeito punitivo prévio por meses (afastamento, restrições) gera sensação de “condenação social”
Ônus da provaAcusação deve provarMantidoProtetiva sai com relato inicial; defesa corre atrás para “desmontar” risco
Prova para condenarProva em juízo; inquérito sozinho não bastaMantidoPercepção pública antecipa culpa pelo simples deferimento da protetiva
Medidas de urgênciaPodem ser sem oitiva inicial; contraditório diferidoDemora na reavaliação = “pena processual”; acesso a bens/documentos é obstáculo

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