Contrariando o senso comum embalado por manchete e nota oficial, regular plataforma não é automaticamente “proteger a sociedade”. Na teoria, é bonito: menos golpe, menos assédio, menos manipulação. Na prática, a gente já viu esse filme. Você cria uma lei “contra o mal” e entrega na mão de governo e corporação a caneta que decide quem fala, quem cala e em quanto tempo. Adivinha o resultado? Remoção em massa, conta derrubada no susto, conteúdo lícito indo junto na varredura e aquela sensação de que o debate público foi trocado por política de empresa.
Vamos ao ponto: o Estado quer prazo de minutos para “tirar do ar” o que ele chamar de “desinformação”. A plataforma, com medo de multa e dor de cabeça, passa a remover por atacado. É o velho truque das porcentagens travestido de “cuidado”: dizem que é para mirar o mal, mas apertam a régua de um jeito que pega todo mundo. E aí o que sobra de liberdade? Termo de uso que muda sem aviso, “violação” que ninguém sabe qual foi e um botão de recurso que serve mais para inglês ver do que para garantir direito.
“Ah, mas tem discurso de ódio, golpe, exploração.” Tem. E precisa ser combatido. Só que é justamente por isso que a régua tem que ser cirúrgica. Ilegal é ilegal — pornografia infantil, doxxing com dado sensível, golpe explícito — não tem conversa. Agora, opinião dura, sátira, investigação jornalística, erro honesto no calor da notícia? Isso é vida democrática. Misturar tudo no mesmo saco com a etiqueta “nocivo” é a pegadinha. Fica amplo o suficiente para caber qualquer desafeto.
Ninguém elegeu gerente de algoritmo. E ninguém deu mandato para o Executivo virar fiscal da verdade. O poder público tem que cobrar processo, não narrativa. Transparência de regra, notificação clara quando derruba conteúdo, explicação objetiva do motivo, canal de apelação de verdade e prazo realista para a decisão. Quer mexer em “risco sistêmico”? Que mostrem o plano por escrito, publiquem números de remoção, taxa de reversão, quanto foi erro, quanto foi acerto. Luz acesa é o único antídoto contra a tesoura ideológica de qualquer lado.
E tem outra: não dá para exigir de um blog pequeno o mesmo que se cobra de uma big tech. Proporcionalidade não é detalhe, é espinha dorsal. Senão você mata o pequeno na burocracia e entrega o mercado ainda mais concentrado na mão de quem já domina. É o mundo perfeito para quem adora um cartel de opinião: poucos players, pouca concorrência, pouca pluralidade. O resto vira inquilino de plataforma, sujeito à humor do moderador.
Quer exemplo simples? Pense na porta do seu prédio. Segurança é justa. Agora imagine o síndico criando uma regra: “Qualquer visita que eu considerar suspeita, sem explicar por quê, volta para a rua em cinco minutos.” Sabe o que acontece? Metade dos amigos barrados por “dúvida razoável” e ladrão profissional aprendendo caminhos paralelos. Overblocking para o cidadão normal; imunidade prática para quem já vive de burlar regra. Na internet é igual: quem cumpre é quem mais apanha; quem ignora segue operando nas sombras.
O que funciona? Processo e transparência. Remoção bem justificada, registro público de ordens governamentais (com base legal e número), acesso a dados para pesquisa independente (com privacidade preservada), exceções claras para jornalismo e sátira, e interoperabilidade para o usuário não ficar refém: quer sair, leva seus dados, seu conteúdo, sua audiência. Simples. Auditoria externa periódica olhando impacto (não o segredo do código). E devido processo também para criadores e veículos: derrubou minha conta? Explique, prove, permita recurso. Perdeu? Restaure com o mesmo alcance do original.
Regulação boa é aquela que você topa manter quando o seu adversário chega ao poder. Se a lei só parece esperta quando o seu está no comando, ela é uma bomba-relógio. Hoje cala “o outro”. Amanhã cala você.
No fim, o recado é direto: plataforma não é polícia do pensamento e governo não é Ministério da Verdade. Dá para reduzir dano real — golpe, exploração de menor, incitação à violência — sem transformar o debate público em corredor polonês de botão “remover”. O resto é conversa para transformar controle em virtude e censura em “cuidado com a sociedade”.
Quer proteger de verdade? Regra clara, processo à vista, dado aberto, direito de recurso. E uma última linha que não muda: ilegal se remove, impopular se debate.






